O mito do mercado sem Estado

Por que mercados dependem de instituições políticas

Introdução

Crédito da imagem principal: Etienne Martin (Unsplash)

É comum ouvir que o mercado é uma força natural, espontânea, que surge da livre troca entre indivíduos, enquanto o Estado aparece depois, como uma interferência externa que regula, tributa ou distorce esse processo. Essa narrativa é atraente, simples e amplamente difundida — mas é historicamente falsa.

Ao longo da história, não há mercado funcional sem Estado — assim como não há Estado minimamente estável sem algum tipo de mercado. A relação entre ambos não é de oposição absoluta, mas de interdependência estrutural. Onde essa relação é mal compreendida, surgem mitos econômicos que dificultam a compreensão do desenvolvimento, da prosperidade e do fracasso das sociedades.

Este artigo parte de uma tese central: o mercado não nasce sozinho. Antes da troca contínua, previsível e expansível, existe sempre uma estrutura política capaz de garantir regras, confiança e estabilidade.

O mito do mercado “autônomo”

A ideia de um mercado plenamente autônomo, capaz de funcionar sem instituições políticas, é relativamente recente. Ela ganha força sobretudo a partir do século XVIII, com o avanço do liberalismo econômico e da crença na autorregulação espontânea das trocas.

No entanto, mesmo os mercados mais simples exigem algo que não surge espontaneamente:

  • regras de propriedade;

  • definição do que pode ser trocado;

  • garantia de contratos;

  • resolução de conflitos.

Sem esses elementos, não há mercado propriamente dito, mas apenas troca ocasional, instável e limitada. O mercado, enquanto sistema contínuo e expansível, depende de instituições que reduzam incertezas — e essas instituições são, historicamente, políticas.

O “mercado autônomo” não é um fenômeno empírico recorrente na história, mas uma abstração teórica.

Moeda: confiança antes de troca

Um dos exemplos mais claros da precedência do Estado sobre o mercado é a moeda. A narrativa tradicional sugere que a moeda teria surgido naturalmente do escambo, como uma solução prática para facilitar trocas. A história real é mais complexa.

Em grande parte das civilizações, a moeda aparece ligada:

  • à cobrança de tributos;

  • ao pagamento de soldados e funcionários públicos;

  • à contabilidade estatal;

  • à padronização de valores para fins administrativos.

A moeda funciona porque há confiança coletiva em sua aceitação futura. Essa confiança não nasce do mercado em si, mas de uma autoridade capaz de definir padrões, garantir validade e impor sua aceitação em obrigações públicas. Sem essa garantia institucional, a moeda perde função, e o mercado regride para formas fragmentadas e pouco eficientes de troca.

Lei e contratos: o alicerce invisível do mercado

Mercados modernos não se limitam à compra e venda imediata. Eles envolvem contratos complexos, crédito, investimentos de longo prazo e expectativas futuras. Para que isso funcione, é indispensável um ambiente jurídico minimamente estável.

Isso pressupõe:

  • regras claras de propriedade;

  • previsibilidade legal;

  • mecanismos confiáveis de execução de contratos;

  • proteção contra arbitrariedades.

Instituições jurídicas existem, sobretudo, para reduzir incertezas e estabilizar expectativas. Onde as regras são claras e aplicadas de forma consistente, os custos de transação diminuem e a atividade econômica se expande. Onde as regras são frágeis, instáveis ou seletivas, o mercado se informaliza, se concentra ou se torna predatório.

Nesse sentido, o Estado não é um obstáculo ao mercado, mas seu arquiteto institucional.

Instituições importam mais do que recursos

A precedência do Estado como base do mercado ajuda a compreender por que sociedades com recursos semelhantes seguem trajetórias econômicas tão distintas. Não é a abundância natural, nem o nível inicial de riqueza, que determina a vitalidade de um mercado ao longo do tempo, mas a qualidade das instituições que o estruturam.

Onde o Estado consegue impor regras previsíveis, proteger direitos e limitar o exercício arbitrário do poder, os mercados tendem a se expandir, diversificar e inovar de forma mais consistente. Já onde as instituições são frágeis, instáveis ou capturadas por interesses restritos, a atividade econômica se concentra, se informaliza ou se torna instável.

O fracasso econômico, portanto, não decorre da presença do Estado em si, mas da incapacidade estatal de criar um ambiente institucional confiável. Mercados não colapsam por excesso de regras, mas pela ausência de regras legítimas e aplicáveis.

Não existe Estado sem mercado — nem mercado sem Estado

É igualmente equivocado imaginar que o Estado possa existir isolado do mercado. Estados precisam arrecadar, financiar suas estruturas administrativas e militares, organizar produção e circulação de bens e sustentar cadeias logísticas complexas.

Mesmo economias altamente centralizadas dependem de algum tipo de mercado, ainda que regulado ou controlado. O conflito real não é entre Estado e mercado, mas entre diferentes formas institucionais de organizar essa relação.

Onde essa relação é equilibrada, surgem sociedades mais estáveis. Onde ela é rompida, surgem informalidade, escassez, corrupção ou colapso fiscal.

O perigo das falsas dicotomias

Tratar Estado e mercado como inimigos absolutos empobrece o debate e leva a políticas públicas ineficazes. Essa falsa dicotomia costuma empurrar sociedades para extremos: Estados hipertrofiados que sufocam a atividade econômica ou mercados desregulados que corroem a própria base institucional que os sustenta.

A história mostra que civilizações duráveis constroem arranjos institucionais complexos, capazes de ajustar essa relação ao longo do tempo. Não se trata de escolher um lado, mas de compreender a lógica estrutural que conecta ambos.

Conclusão

O mercado não é um fenômeno natural que floresce no vácuo. Ele é uma construção institucional que depende de regras, garantias e confiança — elementos historicamente fornecidos pelo Estado. Da mesma forma, o Estado não sobrevive sem mercados que sustentem sua base econômica.

Reconhecer o mito do mercado sem Estado não significa defender estatismo irrestrito, mas compreender a ordem histórica que torna a troca possível. Ignorar essa relação é cair em simplificações que explicam pouco e resolvem menos.

Talvez uma das principais lições da história econômica seja esta: não é a ausência do Estado que cria mercados fortes, mas a presença de instituições capazes de organizá-los de forma legítima, previsível e duradoura.

Referências conceituais

 

  • Douglass C. North — Institutions, Institutional Change and Economic Performance

  • Daron Acemoglu & James A. Robinson — Why Nations Fail

  • Economia institucional e história econômica comparada

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